sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Escritor Carlos dos Santos faz uma reflexão sobre literatura infantil em Moçambique



Não se endireita a sombra da árvore torta”.

O meu obrigado ao Movimento Literário Kuphaluxa pelo convite que me fez para vos arremessar algumas palavras acerca da temática da literatura infantil. Diz-se que há duas coisas que uma vez arremessadas não se recuperam mais: as pedras e as palavras. Não trago pedras, e vou ser muito cuidadoso com as palavras. Porque as palavras não sendo pedras... se atiradas com força também podem aleijar muito.
Esta é uma área em que venho garimpando com afinco desde que, em 2007, decidi, com a publicação do meu primeiro livro deste género literário, aventurar-me neste território tão sensível e complexo que é escrever para as crianças. Fruto desta aventura tenho visto caírem por terra várias das minhas convicções sobre matérias diversas e brotarem das ruínas dessas certezas, dúvidas que antes eu não sabia que tinha, coisas que eu nem sabia que não sabia.
Por isso, tome-se tudo aquilo que aqui vou partilhar, apesar do tom afirmativo e confiante com que o faço, como dúvidas, como hipóteses de trabalho, possibilidades em que acredito, seja em teoria, seja fruto da minha própria experiência, ou, ainda, produto dinâmico de ambas, até que outros argumentos se alevantem e me convençam do contrário ou do diferente. Essa é, para mim, uma busca permanente. Porque para mim é mais valioso descobrir que estava enganado, e poder, assim, corrigir-me, do que ver confirmado que, porventura, estava certo… e ficar na mesma. Com os erros eu cresço. Errar é bom, se tivermos a capacidade de sermos amigos dos nossos erros, condição sine qua non para podermos aprender com eles. E há tanto que aprender! Eis o que venho aprendendo.
A literatura infantil, outrora omnipresente, predominantemente na forma oral, contada à volta da fogueira, hoje grandemente convertida em literatura escrita… abandonada e esquecida, é algo que eu reputo como fundamental. Vital, mesmo. E, porquê? Se atendermos a que, segundo inúmeros e extensivos estudos psicológicos, é nos primeiros 3 anos de vida que se estrutura e alicerça a essência da personalidade do ser humano, e que só cerca dos 6 anos esse ser humano ingressa na escola, esse local especializado, que as sociedades criaram para educar as crianças, pejado de métodos, impregnado de livros, onde, para se exercer actividade como profissional é precisa uma aturada e cuidadosa formação profissional, está patente que a parte crucial da formação da personalidade delas ocorre antes e fora da escola.
E é realizada por quem? Em primeiro lugar, pelas pessoas mais despreparadas que existem no mundo - os pais. Lamentavelmente, não existem cursos para se ser pai/mãe. Paradoxalmente, é preciso autorização para conduzir uma simples motorizada, mas não é precisa permissão para se fazer um filho! Não existem tais cursos, mas deviam existir. E quem não aprovasse no curso, devia ser impedido de procriar até o conseguir, como se é impedido de conduzir até que se seja aprovado no exame do serviço de viação. E, depois, ainda se é inibido de voltar a conduzir, quando se é apanhado a fazê-lo de forma irresponsável.

Porque as crianças não são coisa com que se brinque, apesar do prazer que dá fabricá-las... Quando somos crianças somos seres extremamente complexos e exigentes. E, por isso, muito sensíveis e delicados.
É, pois, precisamente, neste nicho despido de métodos e de mestres de educação que se insere a literatura infantil. O principal meio de educação nesta tenra idade é o “Karingana ua karingana”, o “Era uma vez…”. Sim, esse meio são as histórias, que, contando às crianças das tristezas do mal e das alegrias do bem semeiam no subconsciente delas a ética que deve sedimentar-se na sua personalidade, de forma a fazer delas pessoas equilibradas sob os pontos de vista físico, emocional e psíquico, auto-suficientes e úteis à sociedade.
Porque, sejamos claros, ao falarmos de literatura infantil estamos a falar de educação das crianças. A literatura infantil será a fonte primária de educação nesse período semental do EU. O papel que lhe cabe é, pois, crucial e inestimável. Os efeitos da sua ausência, visíveis hoje por todo o lado à nossa volta, falam por si.
Mas comunicar com as crianças não é empreitada fácil. É possível comunicar uma mesma coisa, qualquer que ela seja, a todas as pessoas – sejam elas letradas ou iletradas, sejam elas crianças ou anciãos, sejam elas mineiros ou astronautas. Só não é possível fazê-lo da mesma maneira.
Porque para cada idade, em função da estrutura de percepção e raciocínio do volume de informação adquirido que lhe são característicos, existem maneiras específicas, próprias, quer para comunicar com elas, quer para estas se expressarem.
Por exemplo, o direito das crianças a “exprimirem livremente a sua opinião sobre as questões que lhes dizem respeito” está consagrado no artigo 12 da CDC das NU, devendo ser “devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade”. Arrepia-me, por isso, ver as crianças sujeitadas a simularem a expressão de pontos de vista, imitando os piores exemplos que os adultos lhes dão, em forma de Parlamento. As crianças expressam-se “de forma compatível com o desenvolvimento das suas capacidades”, ou seja, têm formas próprias para o fazerem: cantando, desenhando, encenando, jogando, brincando. Formas, estas, que os adultos têm de analisar, para as compreender.


Do mesmo modo, para comunicar com as crianças é preciso utilizar meios de comunicação distintos e específicos, compatíveis “com o desenvolvimento das suas capacidades”, de acordo com a sua idade e maturidade”.
Para escrever para crianças é preciso penetrar nas características da psique infantil e do ritmo do desenvolvimento das mesmas.
A criança pré-escolar é predominantemente emocional, e pouco racional. Simpatiza ou antipatiza, mais do que compreende. Gosta, ou não gosta, mais do que percebe. É a isto que os adultos, com desdém (ou deveria dizer ignorância?), chamam imaturidade.
Por isso, a função principal da educação da criança nesta etapa, mais do que despejar conhecimento e instrução, é o desenvolvimento e o enriquecimento de estados emocionais equilibrados e sadios.
E estes estados se conseguem especialmente através do estabelecimento de laços emocionais saudáveis e sólidos por via de uma estreita osmose entre os adultos e as crianças, particularmente entre os pais e os filhos, emoções saudáveis essas, de onde, depois, brotarão e onde se enraizarão as atitudes, a vontade, a ética e as competências, esse magma de saber-ser, saber e saber-fazer.
Porquê todo este (já extenso) intróito acerca das crianças, em vez de desatar logo a falar do tema literatura infantil? Porque não é possível escrever para crianças sem as compreender profundamente.
Escrever para as crianças não é pegar em papel e caneta (ou num teclado, para muitos, agora) e desatar a aplicar vocabulário, regras gramaticas e técnicas de escrita.
Isso qualquer escrivão pode fazer. Escrever para crianças, já não. É bem mais difícil aprender as crianças do que aprender as técnicas de escrita. Não é por acaso que este é um género literário particular.
Antes de escrever impõe-se que quem o pretenda fazer dê resposta a si mesmo a três questões:
1.    Escrever para quem?
2.    Escrever o quê, para esse “quem”? E,
3.    Escrever como, para conseguir dizer esse “o quê”, a esse “quem”?
Ignorar qualquer destes elementos leva inevitavelmente à produção de uma obra autista, que não alcançará aqueles a quem se destina. Ou melhor, não alcançará ninguém. Porque o produto será ou um conteúdo inadequado ao grupo a que se

destina o texto, ou será um texto escrito de tal maneira que a mensagem, ainda que adequada, não será captada pelo grupo a que é destinada.
Debrucemo-nos, ainda que brevemente, sobre cada uma destas questões com algum detalhe:
1.    Escrever para quem?
Dadas as características da sua psique, escrever para crianças, requer uma linguagem própria. Mas, note-se que a linguagem não é apenas um conjunto de vocábulos empregues segundo os ditames de determinadas regras gramaticais. É sobretudo uma estrutura de formulação e encadeamento de pensamentos e raciocínios, que vai mediar a compreensão e a adesão (ou não) à história que se conta. A linguagem é sobretudo uma maneira de ver o mundo.
Uma obra de literatura infantil deve assentar em princípios pedagógicos: deve partir do nível, do substrato das vivências que as crianças dessas idades possuem. Eu disse “partir”, porque não se deve limitar a isso.
Daí a história deve aprofundar e expandir um passo adiante o conhecimento da criança sobre o assunto da história, umas vezes partindo do geral que lhes é familiar, para lhes desvendar as partes de que esse todo é feito, outras vezes partindo do detalhe que elas conhecem, e revelar-lhes o todo de que ele faz parte. São as crianças e o conteúdo, não o autor e o seu estilo, que determinam qual é a opção certa em cada caso.
Daí que uma das coisas importantes nas histórias infantis é a inclusão de novas palavras, que contém uma ideia nova. Mesmo para levar as crianças a irem procurar o seu significado, para cultivar nelas a busca pelo conhecimento novo de forma a fazerem dessa uma maneira de estar na vida.
Porque as crianças são mais emocionais que racionais, uma história para crianças deve tocar-lhes as emoções, ter humor e dar-lhes prazer, e não ser um rol de informações dirigidas à razão.
E também exige desenho e cor. Não um mero tracejado grosseiro e abstracto, mas, antes, um conjunto melodioso de formas reconhecíveis, que cative o olhar e ajude a ler a mensagem escrita, complementando-a.
Estas são competências que se exigem ao autor.
Chegamos, assim, à segunda questão: “Escrever para quê?”
            A literatura é, em última instância, um instrumento (para não lhe chamar uma arma). Ela é feita e usada para alcançar um fim. Tanto pode ser usada para fins construtivos como para fins destrutivos. Tanto pode ser boa, como perniciosa. Conforme esse objectivo, assim ela será cozinhada e servida.
Uma história pode ser tecida para abrir os horizontes e libertar a imaginação e o potencial, muitas vezes ainda desconhecido, das crianças.

A imaginação é mais importante que o conhecimento. Pelo facto de que o conhecimento está limitado aquilo que já sabemos e compreendemos enquanto a imaginação abrange o mundo inteiro, e tudo aquilo que alguma vez será conhecido e compreendido.” – Einstein

Mas outra história pode ser engendrada precisamente para o contrário – para as condicionar e manietar e, assim, as manipular e fazer crescer dentro das crianças adultos seguidistas, tão apreciados por todos os poderes.
Uma história pode ser esculpida para educar as crianças, transmitindo-lhe valores éticos, ensinando-lhes que ser cidadão é fazer escolhas conscientes e assumi-las. Mas, outra história pode ser pintada para o fim oposto, para as adestrar, para lhes embutir valores morais, para as ensinar a obedecer.
Esta é sempre uma escolha que o autor faz.
Respondidas estas duas questões podemos, finalmente, começar a escrever. Ora, então… 


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