“Não se endireita a
sombra da árvore torta”.
O meu obrigado ao Movimento Literário Kuphaluxa pelo
convite que me fez para vos arremessar algumas palavras acerca da temática da literatura
infantil. Diz-se que há duas coisas que uma vez arremessadas não se recuperam
mais: as pedras e as palavras. Não trago pedras, e vou ser muito cuidadoso com
as palavras. Porque as palavras
não sendo pedras... se atiradas com força também podem aleijar muito.
Esta é uma área em que venho garimpando com afinco desde que,
em 2007, decidi, com a publicação do meu primeiro livro deste género literário,
aventurar-me neste território tão sensível e complexo que é escrever para as
crianças. Fruto desta aventura tenho visto caírem por terra várias das minhas convicções
sobre matérias diversas e brotarem das ruínas dessas certezas, dúvidas que
antes eu não sabia que tinha, coisas que eu nem sabia que não sabia.
Por isso, tome-se tudo aquilo que aqui vou partilhar, apesar
do tom afirmativo e confiante com que o faço, como dúvidas, como hipóteses de
trabalho, possibilidades em que acredito, seja em teoria, seja fruto da minha
própria experiência, ou, ainda, produto dinâmico de ambas, até que outros
argumentos se alevantem e me convençam do contrário ou do diferente. Essa é, para
mim, uma busca permanente. Porque para mim é mais valioso descobrir que estava
enganado, e poder, assim, corrigir-me, do que ver confirmado que, porventura, estava
certo… e ficar na mesma. Com os erros eu cresço. Errar é bom, se tivermos a capacidade
de sermos amigos dos nossos erros, condição sine
qua non para podermos aprender com eles. E há tanto que aprender! Eis o que
venho aprendendo.
A literatura infantil, outrora omnipresente, predominantemente
na forma oral, contada à volta da fogueira, hoje grandemente convertida em
literatura escrita… abandonada e esquecida, é algo que eu reputo como fundamental.
Vital, mesmo. E, porquê? Se atendermos a que, segundo inúmeros e extensivos
estudos psicológicos, é nos primeiros 3 anos de vida que se estrutura e
alicerça a essência da personalidade do ser humano, e que só cerca dos 6 anos esse
ser humano ingressa na escola, esse local especializado, que as sociedades
criaram para educar as crianças, pejado de métodos, impregnado de livros, onde,
para se exercer actividade como profissional é precisa uma aturada e cuidadosa
formação profissional, está patente que a parte crucial da formação da
personalidade delas ocorre antes e fora da escola.
E é realizada por quem? Em primeiro lugar, pelas
pessoas mais despreparadas que existem no mundo - os pais. Lamentavelmente, não
existem cursos para se ser pai/mãe. Paradoxalmente, é preciso autorização para
conduzir uma simples motorizada, mas não é precisa permissão para se fazer um
filho! Não existem tais cursos, mas deviam existir. E quem não aprovasse no
curso, devia ser impedido de procriar até o conseguir, como se é impedido de
conduzir até que se seja aprovado no exame do serviço de viação. E, depois, ainda
se é inibido de voltar a conduzir, quando se é apanhado a fazê-lo de forma
irresponsável.
Porque as crianças não são coisa com que se brinque,
apesar do prazer que dá fabricá-las... Quando somos crianças somos seres extremamente
complexos e exigentes. E, por isso, muito sensíveis e delicados.
É, pois, precisamente, neste nicho despido de métodos e
de mestres de educação que se insere a literatura infantil. O principal meio de
educação nesta tenra idade é o “Karingana
ua karingana”, o “Era uma vez…”.
Sim, esse meio são as histórias, que, contando às crianças das tristezas do mal
e das alegrias do bem semeiam no subconsciente delas a ética que deve
sedimentar-se na sua personalidade, de forma a fazer delas pessoas equilibradas
sob os pontos de vista físico, emocional e psíquico, auto-suficientes e úteis à
sociedade.
Porque, sejamos claros, ao falarmos de literatura
infantil estamos a falar de educação das crianças. A literatura infantil será a
fonte primária de educação nesse período semental do EU. O papel que lhe cabe é,
pois, crucial e inestimável. Os efeitos da sua ausência, visíveis hoje por todo
o lado à nossa volta, falam por si.
Mas comunicar com as crianças não é empreitada fácil. É
possível comunicar uma mesma coisa, qualquer que ela seja, a todas as pessoas –
sejam elas letradas ou iletradas, sejam elas crianças ou anciãos, sejam elas
mineiros ou astronautas. Só não é possível fazê-lo da mesma maneira.
Porque para cada idade, em função da estrutura de
percepção e raciocínio do volume de informação adquirido que lhe são
característicos, existem maneiras específicas, próprias, quer para comunicar
com elas, quer para estas se expressarem.
Por exemplo, o direito das crianças a “exprimirem livremente a sua opinião sobre as
questões que lhes dizem respeito” está consagrado no artigo 12 da CDC das
NU, devendo ser “devidamente tomadas em
consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade”.
Arrepia-me, por isso, ver as crianças sujeitadas a simularem a expressão de
pontos de vista, imitando os piores exemplos que os adultos lhes dão, em forma
de Parlamento. As crianças expressam-se “de forma compatível com o desenvolvimento das suas
capacidades”, ou seja, têm formas próprias para o fazerem: cantando, desenhando,
encenando, jogando, brincando. Formas, estas, que os adultos têm de analisar, para
as compreender.
Do mesmo modo, para comunicar com as crianças é preciso
utilizar meios de comunicação distintos e específicos, compatíveis “com o desenvolvimento das suas
capacidades”, “de acordo com a sua idade e maturidade”.
Para escrever para crianças é preciso penetrar nas
características da psique infantil e do ritmo do desenvolvimento das mesmas.
A criança pré-escolar é predominantemente emocional, e
pouco racional. Simpatiza ou antipatiza, mais do que compreende. Gosta, ou não
gosta, mais do que percebe. É a isto que os adultos, com desdém (ou deveria
dizer ignorância?), chamam imaturidade.
Por isso, a função principal da educação da criança nesta
etapa, mais do que despejar conhecimento e instrução, é o desenvolvimento e o
enriquecimento de estados emocionais equilibrados e sadios.
E estes estados se conseguem especialmente através do
estabelecimento de laços emocionais saudáveis e sólidos por via de uma estreita
osmose entre os adultos e as crianças, particularmente entre os pais e os
filhos, emoções saudáveis essas, de onde, depois, brotarão e onde se enraizarão
as atitudes, a vontade, a ética e as competências, esse magma de saber-ser,
saber e saber-fazer.
Porquê todo este (já extenso) intróito acerca das
crianças, em vez de desatar logo a falar do tema literatura infantil? Porque
não é possível escrever para crianças sem as compreender profundamente.
Escrever para as crianças não é pegar em papel e caneta
(ou num teclado, para muitos, agora) e desatar a aplicar vocabulário, regras
gramaticas e técnicas de escrita.
Isso qualquer escrivão pode fazer. Escrever para
crianças, já não. É bem mais difícil aprender as crianças do que aprender as
técnicas de escrita. Não é por acaso que este é um género literário particular.
Antes de escrever impõe-se que quem o pretenda fazer dê
resposta a si mesmo a três questões:
1. Escrever para quem?
2. Escrever o quê,
para esse “quem”? E,
3. Escrever como,
para conseguir dizer esse “o quê”, a esse “quem”?
Ignorar qualquer destes elementos leva inevitavelmente
à produção de uma obra autista, que não alcançará aqueles a quem se destina. Ou
melhor, não alcançará ninguém. Porque o produto será ou um conteúdo inadequado
ao grupo a que se
destina o texto, ou será um texto escrito de tal maneira
que a mensagem, ainda que adequada, não será captada pelo grupo a que é
destinada.
Debrucemo-nos, ainda que brevemente, sobre cada uma destas
questões com algum detalhe:
1.
Escrever para quem?
Dadas as características da sua psique, escrever para
crianças, requer uma linguagem própria. Mas, note-se que a linguagem não é
apenas um conjunto de vocábulos empregues segundo os ditames de determinadas regras
gramaticais. É sobretudo uma estrutura de formulação e encadeamento de
pensamentos e raciocínios, que vai mediar a compreensão e a adesão (ou não) à história
que se conta. A linguagem é sobretudo uma maneira de ver o mundo.
Uma obra de literatura infantil deve assentar em
princípios pedagógicos: deve partir do nível, do substrato das vivências que as
crianças dessas idades possuem. Eu disse “partir”, porque não se deve limitar a
isso.
Daí a história deve aprofundar e expandir um passo
adiante o conhecimento da criança sobre o assunto da história, umas vezes
partindo do geral que lhes é familiar, para lhes desvendar as partes de que esse
todo é feito, outras vezes partindo do detalhe que elas conhecem, e
revelar-lhes o todo de que ele faz parte. São as crianças e o conteúdo, não o
autor e o seu estilo, que determinam qual é a opção certa em cada caso.
Daí que uma das coisas importantes nas histórias infantis
é a inclusão de novas palavras, que contém uma ideia nova. Mesmo para levar as
crianças a irem procurar o seu significado, para cultivar nelas a busca pelo
conhecimento novo de forma a fazerem dessa uma maneira de estar na vida.
Porque as crianças são mais emocionais que racionais, uma
história para crianças deve tocar-lhes as emoções, ter humor e dar-lhes prazer,
e não ser um rol de informações dirigidas à razão.
E também exige desenho e cor. Não um mero tracejado
grosseiro e abstracto, mas, antes, um conjunto melodioso de formas
reconhecíveis, que cative o olhar e ajude a ler a mensagem escrita,
complementando-a.
Estas são competências que se exigem ao autor.
Chegamos, assim, à segunda questão: “Escrever para quê?”
A
literatura é, em última instância, um instrumento (para não lhe chamar uma
arma). Ela é feita e usada para alcançar um fim. Tanto pode ser usada para fins construtivos como para fins destrutivos. Tanto pode ser boa, como
perniciosa. Conforme esse objectivo, assim ela será cozinhada e servida.
Uma história pode ser tecida para abrir os horizontes e
libertar a imaginação e o potencial, muitas vezes ainda desconhecido, das
crianças.
“A imaginação é mais importante que
o conhecimento. Pelo facto de que o conhecimento está limitado aquilo que já
sabemos e compreendemos enquanto a imaginação abrange o mundo inteiro, e tudo
aquilo que alguma vez será conhecido e compreendido.” – Einstein
Mas outra história pode ser engendrada precisamente para
o contrário – para as condicionar e manietar e, assim, as manipular e fazer
crescer dentro das crianças adultos seguidistas, tão apreciados por todos os poderes.
Uma história pode ser esculpida para educar as crianças,
transmitindo-lhe valores éticos, ensinando-lhes que ser cidadão é fazer escolhas
conscientes e assumi-las. Mas, outra história pode ser pintada para o fim oposto,
para as adestrar, para lhes embutir valores morais, para as ensinar a obedecer.
Esta é sempre uma escolha que o autor faz.
Respondidas estas duas questões podemos, finalmente,
começar a escrever. Ora, então…
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